agosto 27, 2010

frascos de especiarias

Eu lembro-me de vê-la sentada na cama vazia. Há muito tempo que a cama se divorciara de afectos. Ela escondia o medo com a posição que mantinha no corpo. O corpo encolhido, lembrado numas roupas vagas de pescador. Os poucos objectos que preenchiam a divisão permaneciam calados. As pequenas lembranças. O móvel antigo. O soalho velho e gasto que seguia a porta que estava fechada.
Acariciava os lençóis com as mãos e sentia o cheiro do sal. O odor de alguém que antes esteve ali e agora desaparecia nas sombras de outra casa. Ela olhava o tecto tentanto recordar-se das formas que imaginava no escuro em pequena. Eram formas elípticas, brilhantes, desenhadas com o seu dedo de pequena. Quase conseguia alcançar o céu se a noite não tivesse fim e a escuridão dos seus sonhos a acompanhasse no trajecto do areal.
Regressava das viagens do barco, das lições do mar e cruzava o olhar com uns olhos amargos à procura de uma rede de pesca segura. Certamente ele não repararia na silhueta desapercebida da rapariga que calçava botas de borracha e um anorak amarelo. Os cabelos voavam com o vento, que transportava o cheiro, o seu perfume feminino até ele. Até ele se embebedar nos seus sentidos e correr de novo ao encontro dos seus olhos. Ela sorriu. O mar ensinou-a a sorrir e permaneceu quieta, talvez procurando o lugar seguro na expressão do rosto que se estendia à sua frente.
Pareciam ignorar o movimento alheio dos outros corpos e aproximaram-se num elixir de emoções como uma catadupa numa batalha feroz.
Pareciam querer agarrar o destino um do outro até que a corrente a puxou do lugar e ela mergulhou nas águas ansiosas salgadas. Ele riu-se. Pareceu acostumado à imbecilidade do amor.
Era natural.

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