maio 12, 2010
há trabalhos que até valem a pena
Vou-te contar uma história. A minha história. A do meu maior amor. Quando tinha quinze anos, há uns anos atrás, a minha cabeça estava invadida por festas, amigas. As festas que se enchiam de cor com os balões, os bolos e chocolates, prendas, gente por todo o lado, pinturas, caças ao tesouro, os meus amigos e principalmente os meus pais. Mas não, nada servia os meus desejos ou o que eu imaginava durante a noite em sonhos. Nada corria como eu planeava ou o que julgava planear. E não, não lhe chamo “idade do armário”! A minha festa foi passada em casa, no quarto a fazer de conta como as crianças fazem e a camuflar mais uma das discussões dos meus pais, enterrada na cama, com os auscultadores nos ouvidos e a cabeça enfiada na almofada.
Desde sempre acontecia. Ocorria desde que a minha cabeça se recorda. Desde que a minha avó se lembra, e provavelmente desde que os meus pais se conhecem… Sempre houve discussões, que se desculpavam nas divisões das tarefas, na disputa do papel principal na casa, ou melhor dizendo, quem ganhava mais. Depois, como se o barulho ensurdecedor não bastasse, o meu pai, vendo que começava a perder forças nas batalhas pretendidas com a minha mãe; quando se apercebia da sua falta de argumentos alusivos ao que ele chamava de “neuroses de meia-idade” batia-lhe. Guerreava com a força que tinha no corpo. Primeiro, começou com um empurrão, aos meus inocentes quatro anos, segundo os relatos da minha avó. Depois seguiam-se estalos e insultos cada vez piores. Insultos que magoavam a cada dia que passava. E do que me recordo melhor, remonta aos meus 6 anos. Tenho uma visão do meu pai fechá-la no quarto, pegar num cinto e fechar-se com ela na divisão. Ela gritava, gemia com a dor do toque to cinto na sua pele e, o meu pai impunha um grito mais alto, numa tentativa imbecil de abafar os pedidos de socorro dela. Os vizinhos não davam a palavra enquanto a minha avó transformava o acontecimento numa farsa, e eu com a idade que possuía não tinha a liberdade na consciência para agir mais do eles podiam fazer e chamar por ajuda, até porque todos sabiam que dias depois, (por vezes horas) já a minha mãe pedia desculpa, assumia culpas de tudo o que fosse preciso e submetia-se novamente aos caprichos do meu rico pai.
Ora a minha festa, deu-se nesse momento, com uma discussão, sobre o lugar onde seria, quem iria, a comida que deveria haver, acabando por ficar decidido com um: “Estás com problema resolve-se já, cancela-se tudo e acabou!”. E poucos argumentos havia para o que de seguida se dizia: “ a egoísta, mimada, egocêntrica, interesseira…” Tempos atrás, sentia pena pela minha mãe. Disse-lhe inúmeras vezes para o largar, mas ela repetia-o sem respeito por si própria. Afirmava que pensava em mim e que o amor pelo meu pai era superior a tudo, sem intenções de a magoar. Eu parava perplexa, sem palavras, e renunciei o meu dever de amiga e de filha e nunca mais me prenunciei sobre esse assunto.
A minha infância fora passada entre as brincadeiras falsas do peão e das pequenas corridas em frente ao quintal da minha casa. Eu fingia sem chão conhecer o mundo e cada vez mais me camuflava nas árvores, nos pássaros e na atenção que dava aos outros. Guardava dentro de mim o acumular de tentas discussões e esquecia ao fim de um tempo. Acabava por ignorar todos os sinais nos lanches na casa da minha avó ao som da música da época, nas visitas de estudo da escola e nas pequenas amizades que fazia. Umas verdadeiras outras falsas. Mas todas elas contribuíam para esquecer a destruição do meu lar em pequenina até que cresci e tornei-me uma pequena mulher. A minha adolescência proeminente caçava olhares de rapazes especiais, alimentava-me do gosto que tinha pela música e saltava o muro para roubar laranjas à vizinha do lado direito. Era a “rapariga das laranjas” que certo dia conheceu o rapaz que se tornou a razão da sua alegria. Na escola tudo era diferente. Mudei-me. Queria esquecer todas as mágoas que me faziam recordar a dor dos gritos que suavam pelas paredes daquela casa e assim que ingressei no novo liceu algo me chamou a atenção. Ao entreter-me entre os estudos e os concertos de música tinha espaço para ele. Ele, que me enchia de novas esperanças e me levava a ver o rio.
Levava-me a comer um gelado enquanto me pedia o contacto e eu na simpatia daquele pedido, dei-lhe. Sem restrições. Nessa mesma noite, falámos, e recordo-me dos seus elogios. Maquilhava-me de poucas perguntas. Isso fazia-me gostar ainda mais dele. E enquanto a história, a biologia e o inglês se ocupavam de mim durante as manhãs, as tardes eram preenchidas na sua companhia. Balançávamos ao sabor do vento, e muitas vezes a minha avó entrevia nas minhas indecisões. Levava-me a crer que aquelas horas passadas com ele me fariam perder o rumo que pretendia e que apenas não passava de um romance. Todas estas dúvidas lembravam-me sempre da minha mãe e do meu pai.
Nessa altura ainda era jovem, e nos verões que se seguiam esqueci-o. Enchi-lhe o coração de palavras más e anunciei a minha desistência. Ocupei-me de projectos para me fazer crer que aqueles dias que pareceram meses não preencheram o meu coração. Entre o trabalho no aquário e as horas extra na loja de roupa na cidade eu dava uns pulinhos pela praia e avistava o mar. Tomava conta de tudo o que pudesse ver e ouvir para um dia me tornar mulher, longe da mulher que via na minha mãe. Não queria essa influência e no último verão antes da faculdade decidi seguir em frente e dedicar-me ao meu curso.
Conheci gente que me ocupou de novo o coração, e que me fantasiava de pequenas saídas, experiências que me fizeram concretizar a revolta que há muito esperava ter.
Fui sendo livre e conquistei o meu lugar na sociedade. Recordo-me de noites ouvir as suas palavras dizendo que não iria desistir de mim, que por entre os caminhos que caminhámos o nosso destino havia de se encontrar num deles num futuro próximo. Num futuro.
Meses passaram e eu desenhava cruzes no calendário. Cresci ao ponto de aprender que todas aquelas agressões só me fizeram impor de novo as minhas opiniões. As entrevistas de emprego tornaram-se alvos fáceis de abater. Era feliz e tudo o que pensava ser transformou-se nalgo totalmente diferente, mas algo novo. A “rapariga das laranjas” tornou-se uma mulher com interesses e finalmente segui o meu rumo.
Continuei a ver os meus amigos de faculdade. Dias não passavam em que não houvesse um café ou uma discoteca combinada para um fim-de-semana em que a cabeça precisasse de descanso. Partíamos em busca de novas aventuras porque a idade nos permitia, e nessa altura chegava-me ao coração um pequeno aperto que não conseguia compreender. Acabava por esquecer e me dedicar ao trabalho. Era jovem e tinha tanto para dar como tinha no dia do meu nascimento. Tudo. Foi algo doloroso e a mágoa que restou que me fez ver que nada é etéreo.
Passados 20 anos, tudo mudou. A minha visão do mundo, a minha personalidade e o meu carácter modificaram-se. A maturidade que ganhei desde os quinze anos à beira-rio, a convivência com outras pessoas além do meu núcleo familiar, principalmente da minha avó e da minha mãe, e as experiências vividas fizeram-me ver que a vida esconde muitos segredos quando temos quinze aninhos. As experiências e as memórias que restam delas moldam-nos e constroem-nos. Claro, que o que aconteceu na minha infância faz parte de mim e também influencia o modo como olho o rosto de quem me rodeia mas não me constrói inteiramente. Apenas foi um pedaço do coração que espera ser preenchido num dia destes.
Às vezes cruzo o olhar pelo café enquanto espero que o empregado se lembre que pedi um capuchinno. É o que faço tantas vezes agora que cheguei de tão longe para me encontrar com o destino.
Quando senti o gosto do café e o pousei na chávena os meus olhos cruzaram-se com uns olhos castanhos grandes. Fortes e foi aí que me apercebi da sua presença. Agora explicava o pequeno aperto no coração.
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