Não sei porque razão me acontece, mas gosto de estranhos. Por exemplo a miúda do Marquês de Pombal que veio da lição de Italiano. Os homens de gabardina e pasta de cabedal, homens de negócio. Certas mães que carregam as filhas pela mão e são felizes com a maternidade. Jovens da minha idade, cheios de esperança, ou então desiludidos com a situação precária do país. O velho inglês que carregava a mala do acordeão até sair na paragem certa.
Gosto da mulher da loja de colchões que me explicou que o livro da montra estava à venda. O Manuel do café que me conta histórias do 25 de Abril. De todas as almas que estavam no Largo do Carmo nas Comemorações e que me deixaram passar até à frente podendo ver o Vasco Lourenço. Gosto de quem lê no comboio. De quem lê o jornal. Dos namorados que discutem, e é tão passageiro. Dos documentos antigos dos meus avós e da sua estranha existência que não passou por mim.
Acho que somos nada. Estamos aqui apenas um instante. Eu estou aqui há apenas um instante, e já vivi quase nada. Engulo, espremo, abraço tudo ao máximo instante da minha vida para que possa guardar com recordação. Tenho pesadelos com a falta de memória, com solidão. Tenho pesadelos com a falta de desejo, de amor. Amizade.
Tenho medo do frio, da vida sem chão. Às vezes tenho medo de mim própria, até que não me possa esconder.
Hei-de permanecer, até voltar ao sítio original. Um lugar estranho.