E no entanto, existe ainda um outro mundo no qual eu não quero viver: um mundo onde o corpo e o pensar independente são condenados e onde coisas que fazem parte do melhor que podemos experimentar são estigmatizadas como pecado. O mundo em que nos é exigido amar os tiranos, os torcionários e assassinos traiçoeiros, mesmo quando as suas brutais passadas marciais ecoam atordoantes pelas vielas, ou quando se esgueiram, silenciosos e felinos, como sombras cobardes, pelas ruas e travessas, para enterrar pela costas, direito ao coração das vítimas, o aço faiscante. Entre todas as afrontas que do alto do púlpito foram lançadas às pessoas, uma das mais absurdas é, sem dúvida, a exigência de perdoar e até de amar essas criaturas. Mesmo se alguém o conseguisse, isso significaria uma falsidade sem igual e um esforço de abnegação desumano que teria, forçosamente, que ser pago com a mais completa atrofia. Esse mandamento, esse desvairado e perverso mandamento do amor para com o inimigo serve apenas para quebrar as pessoas, para lhes roubar toda a coragem e toda a confiança em si próprias, e para as tornar maleáveis nas mãos dos tiranos, para que elas não consigam encontrar a força para se revoltarem, e se necessário pegando em armas.
Eu venero a palavra de Deus, pois amo a sua força poética. E abomino a palavra de Deus, pois odeio a sua crueldade. O amor é um difícil amor, pois tem constantemente que distinguir entre o fulgor das palavras e a exaltada submissão a uma divindade presumida. O ódio é um difícil ódio, pois como é que podemos permitir-nos odiar palavras que participam da própria melodia da vida nesta parte do mundo? Palavras que no ensinaram, desde o início, o que significa a reverência? Palavras que para nós foram como que fanais, quando começámos a pressentir que a vida visível não pode ser toda a vida? Palavras sem as quais não seríamos aquilo que somos?
Mas não nos esqueçamos: são palavras que exigem de Abraão que ele sacrifique o seu próprio filho, como se de um bicho se tratasse. O que é que fazemos com a nossa ira quando lemos isso? O que pensar de um tal Deus? Um Deus que acusa Job de disputar com ele quando nada sabe e nada entende? Quem foi que o criou assim? E por que é menos injusto quando Deus lança, sem qualquer motivo, alguém para a desgraça do que quando é um comum mortal a fazê-lo? Não terá Job todos os motivos para a sua queixa?
A poesia da Palavra divina é tão avassaladora que tudo silencia. Toda e qualquer contestação acaba reduzida a um lastimável ladrar. É por isso que não basta pôr simplesmente a Bíblia de parte, temos antes de a atirar fora, assim que estejemos fartos do seus desaforos e da servidão que ela nos impõe. Manifesta-se nela um Deus avesso à vida e à alegria, um Deus que só pretende constranger a poderosa dimensão de uma vida humana, o grande círculo que ela consegue descrever - desde que lhe concedam para tal a liberdade – e apertá-la até que se reduza a um só e contraído ponto da obediência. Amarfanhados pela mágoa e suportando o peso dos pecados, ressequidos pela sujeição e pela infâmia da confissão, devemos arrastar-nos até à sepultura, a testa marcada pela cruz de cinza, na esperança mil vezes refutada de uma vida melhor ao lado de alguém que antes nos roubou toda a alegria e no privou de todas as liberdades?
E, no entanto, as palavras que Dele e para ele se dirigem são de uma sedutora beleza. Como as amei nos meus tempos de sacristão! Como me deixei embriagar por elas à luz das velas do altar! Como me pareceu claro, claro como a luz, que aquelas palavras fossem a medida de todas as coisas! Como achava incompreensível que as pessoas dessem importância a outras palavras, quando cada uma delas só podia significar uma condenável dispersão e uma perda da essência! Ainda hoje paro quando escuto um canto gregoriano; e por um instante irreflectido sinto-me triste porque o antigo arrebatamento deu definitivamente lugar à rebelião. Uma rebelião que se ateou em mim como uma labareda quando, pela primeira vez, ouvi as seguintes palavras: sacrificium entellectus.
Como é que podemos ser felizes sem a curiosidade, sem perguntas, dúvidas e argumentos? Sem o prazer de pensar? Estas duas palavras que são como o golpe da espada que nos decapita, não significam outra coisa senão a imposição de dirigir o nosso sentir e actuar contra o nosso próprio pensar; elas representam um convite a uma dilaceração total, a ordem para que sacrifiquemos precisamente aquilo que constitui o núcleo da felicidade em cada um de nós - a unidade e a concordância internas da nossa vida. O escravo no porão da galera está acorrentado, mas pode pensar o que quiser. Porém, o que Ele, o nosso Deus, nos impõe é que interiorizemos, com o nosso próprio esforço, a nossa própria servidão, e que, ainda por cima, o façamos com alegria e de livre vontade. Poderá haver maior escárnio?
Na sua omnipresença, o Senhor é alguém que, dia e noite, nos observa, a cada hora, a cada minuto, a cada segundo ele regista as nossas acções e o nosso pensamento. Nunca nos permite um momento sequer em que possamos estar a sós connosco próprios. Mas o que é um ser humano sem segredos? Sem pensamentos e desejos que apenas ele e só ele conhece? Todos os torcionários, os da Inquisição e os actuais sabem-no bem: corta-lhe a retirada para dentro, nunca apagues a luz, nunca o deixes sozinho, nega-lhe o sono e o sossego - e ele acabará por falar. O facto da tortura nos roubar a alma significa que ela nos nega a possibilidade de estarmos sozinhos connosco próprios, algo de que necessitamos como do ar para respirar. Será que o Senhor, o nosso Deus, não se apercebeu de que com a sua desenfreada curiosidade e sua repugnante indiscrição nos rouba uma alma, uma alma, ainda por cima, que se quer imortal?
Quem é que quer a sério ser imortal? Quem é que deseja viver para toda a eternidade? Como seria entediante e vazio saber que o que hoje acontece, neste mês ou neste ano, não tem qualquer significado. Os dias, os meses e os anos sucedem-se indefinidamente. Infinitamente, no sentido literal da palavra. Se isso assim fosse, haveria algo que ainda tivesse importância? Não precisaríamos de contar com o tempo, não perderíamos oportunidades, nunca teríamos de nos apressar. O facto de fazermos uma coisa hoje ou deixá-la para amanhã seria indiferente, perfeitamente indiferente. Negligências milhões de vezes repetidas deixariam de ter, perante a perspectiva da eternidade, qualquer relevância, e não faria sentido lamentar algo, pois teríamos sempre tempo para recuperar. Nem sequer poderíamos entregar-nos à simples fruição do dia, pois esse prazer alimenta-se precisamente da consciência da caducidade do tempo, o ocioso é um aventureiro perante a morte, um cruzado contra o ditado da pressa. Se houvesse sempre e em todas as ocasiões tempo para tudo e mais alguma coisa, onde é que haveria ainda espaço para nos alegrarmos com um certo esbanjar do tempo disponível?
Um sentimento não é idêntico quando surge pela segunda vez. Ele tinge-se de outras nuances devido à percepção do seu retorno. Nós entediamo-nos e fartamo-nos dos nossos sentimentos quando eles se repetem demasiadas vezes ou duram demasiado tempo. Seria então forçoso que na alma imortal se instalasse um descomunal tédio e um gritante desespero, perante a certeza de que aquilo nunca teria fim. Os sentimentos querem desenvolver-se, e nós com eles. Eles tornam-se naquilo que são precisamente porque expulsam o que foram, e porque fluem em direcção a um futuro em que novamente se irão afastar de si próprios. O que é que aconteceria se esse caudal desaguasse no infinito? Dentro de nós teriam de gerar-se milhares de sensações que nós, habituados que estamos a uma dimensão limitada do tempo, nunca conseguiríamos imaginar. De modo que, pura e simplesmente, não sabemos o que nos é prometido quando ouvimos falar da vida eterna. Como é que seria continuarmos a ser nós próprios na eternidade, sem o consolo de podermos, um dia, vir a ser redimidos da obrigação de sermos nós? Não o sabemos, e o facto de nunca o virmos a saber representa uma bênção. E isso porque de uma coisa podemos estar certos: esse paraíso da eternidade seria um inferno.
É a morte que concede ao instante a sua beleza e o seu pavor. Só através da morte é que o tempo se transforma num tempo vivo. Por que é que o Senhor, o Deus omnisciente, não sabe isso? Porque é que nos ameaça com uma imortalidade que só poderia significar um vazio insuportável?
Não quero viver num mundo sem catedrais. Preciso do brilho dos seus vitrais, do seu fresco recato, do seu silêncio imperioso. Preciso das marés sonoras do órgão e do sagrado ritual das pessoas em oração. Preciso da santidade das palavras, da elevação da grande poesia. De tudo isso preciso. Mas não menos necessito da liberdade e do combate contra tudo o que é cruel. Porque uma coisa não é nada sem a outra. E que ninguém me obrigue a escolher."
(“Reverência e Aversão Perante a Palavra de Deus”. Discurso de Amadeu de Prado. Comboio Nocturno para Lisboa. Capítulo 19)
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