Se reparar no cheiro que lhe atinge o nariz vai perceber que está perto menina! Foi o que o senhor da mercearia disse quando a rapariga pegou na maçã. Não era uma maçã qualquer. Aquela maçã carregava a força de uma tempestade de sabores e fazia companhia ás cerejas da banca vizinha.
A cidade vestia-se assim. De vermelho e laranja com umas pitadas de branco que suavizavam as paisagens. O livro irrequieto balançava na prateleira à espera da compra da rapariga que trazia o vestido vermelho com vergonha do seu porte. Era demasiado arriscado perceber-se que o amor fazia-lhe companhia. No entanto os sabores amainavam o sentimento e quando o barulho da porta da livraria se calou vieram os sons do mundo numa sinfonia sem fim.
As casas sorriam com os canteiros à porta e faziam lembrar uma dança selvagem de árvores rebeldes durante a noite. É assim que as árvores se apaixonam. Elas dançam e fazem amor com o céu. É assim que os pássaros cantam. Eles voam e fazem amor com os sorrisos dos que param num ramo duma árvore qualquer.
A baixa era frequentada pelos homens insanos de corpos juvenis que carregavam consigo ar sério enquanto o rapaz que vive na casa pequena com a caixa de correio verde, corre pelo campo e dá um beijo apaixonado á miúda nova que veio da cidade.
A inveja muitas vezes bate nos mais fracos e as senhoras que passavam pela montra da boutique ficavam com a boca seca e invejavam os lenços que um dia sonhariam ter e fazer voar num passeio de carro por França.
A miúda que se esconde por detrás da árvore? Vês? Ela espreita, calada e surda. Apenas escuta os sons. Temos de ouvir. Ouvir na escuridão. Ela escuta e vai em busca de uma oportunidade de passear pela Holanda e lá ter um ‘encontro giro’ com o rapaz que faz horas extraordinárias do café. São assim os desejos. É mais que uma atracção física. Faz-se de amor.
Os motoristas das belas senhoras, que carregam sonhos antigos desfeitos pelos maridos conversam entre si pegando com cuidado no charuto e fazendo vez entre si para provar o sabor alucinante do tabaco. Enquanto esperam pelos donos, aproveitam a vida e observam o pouco movimento da estrada, porque o verdadeiro movimento está no andar. No andar dos gaiatos e das miúdas que correm à espera de os apanhar e rirem-se de si mesmos. Algures na praça alguns seguram balões e elas trazem as bonecas já gastas da brincadeira. Os apaixonados namoram às escondidas e no campo outros dão beijos de loucura porque apenas os pássaros os ouvem e esses guardam bem segredos.
Ao fim da tarde a biblioteca está cheia. Os livros não se cansam de dar explicações e vão ganhando pó ao longo dos anos. Eles encerram tantas histórias que já se deitam comovidos com a vida que surge nas ruas. São outros tempos que se vivem. Tempos bons que, o senhor da drogaria se entretém a contar quando algum moço lhe vai pedir umas moedas para comprar um brinquedo. Ele senta-se no pequeno banco de madeira e perde-se no tempo, imaginando-se já um homem grande com o braço de uma senhora entrelaçado no seu. Um dia irão ter filhos e ele próprio irá contar-lhes a mesma história que o fascinou em criança.
A mãe feiticeira, pega na colher e faz girar a sobremesa e a sopa que irá alimentar as bocas ao jantar. Todos se reúnem depois da folia de um dia de verão. A moça nova serve-se na casa do companheiro. O pequeno moço entretém-se a roubar pedaços de chouriço enquanto faltam pessoas na mesa. O marido ainda traz o cheiro do charuto algures na boca cansada e nos braços exaustos de guiar.
Por fim está tudo junto e preparam-se para comer. O livro da miúda ficou pousado no alpendre em cima da toalha de piquenique. O brinquedo do gaiato gasta-se nas mãos do chão da noite que por aí vem dentro. O lenço da rapariga embeleza o rosto que há poucas horas foi beijado de paixão e espera por mais amor. O rapaz olha-a com prazer. E os pais sorriem e vêm que tudo está bem. Algures no ar paira um cheiro a cerejas. Ou será maçãs? Mas não. Os sentidos enganaram-se. Foram confundidos com o cheiro da maçã que o senhor Augusto há pouco me deu a provar na mercearia da vila.
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